good old Chantilly
Os gatos podem ser a sombra do sonho que a insónia não nos deixa sonhar
Os antigos egípcios tinham razão. Chamavam-lhes os videntes da noite, reconhecendo a divindade que eles mostram no porte. Eu não me canso de os olhar. Quando era pequeno, brincava com eles, e a minha mãe dizia que era o mais mal comportado do grupo. Depois, conheci muitas «velhas dos gatos», feiticeiras deles rodeadas, que gastam a pequena pensão que recebem em comida para lhes dar, esquecendo-se elas próprias de comer. Vi então que os gatos podem ser a sombra do sonho que a insónia não nos deixa sonhar.
Os antigos egípcios tinham razão. Chamavam-lhes os videntes da noite, reconhecendo a divindade que eles mostram no porte. Eu não me canso de os olhar. Quando era pequeno, brincava com eles, e a minha mãe dizia que era o mais mal comportado do grupo. Depois, conheci muitas «velhas dos gatos», feiticeiras deles rodeadas, que gastam a pequena pensão que recebem em comida para lhes dar, esquecendo-se elas próprias de comer. Vi então que os gatos podem ser a sombra do sonho que a insónia não nos deixa sonhar.
Quando retratou Olympia, Manet pôs-lhe aos pés um gato preto, que olha como se existisse só para isso e com cuja cauda desenha um altivo ponto de interrogação que resume todas as perguntas do mundo. Alberto Giacometti esculpiu «le chat» como se o alongasse para ele vir até nós. A arte, de Leonardo a Picasso, gosta de gatos. E, às vezes, teme-os. De Montaigne a Baudelaire e a Eliot, a literatura também está cheia de gatos. Mallarmé tinha um gato chamado Neige, que (dizia ele) com a cauda apagava os seus versos. O gato de Borges respondia ao nome de Beppo, embora me digam que os gatos devem ter «is» dentro do nome. E, de Mozart a Rossini e a Satie, ouvem-se gatos na música e vêem-se gatos no teatro, no cinema, na fotografia.
Entre nós, Stuart apanhou os gatos famintos e atrevidos do Bairro Alto e de Alfama. Milly Possoz fez deles a sua obsessão e a sua companhia. Fialho ligou-lhes o nome para sempre e Pessoa fez do gato o símbolo da felicidade autêntica, a que não se nomeia. Quem os lê nunca mais esquece aqueles versos que começam: «Gato que brincas na rua/ Como se fosse na cama,/ Invejo a sorte que é tua/ Porque nem sorte se chama.» Agostinho da Silva falava e o gesto da sua mão andava sobre o gato, como um barco sobre o mar. Cesariny, que escreveu o Jornal do Gato, tinha-os em casa e mandava pôr anúncio no jornal quando morriam. Vieira da Silva, que era chamada «bicho» pelo marido, Arpad, deixou a Cesariny um quadro intitulado Mário le Chat. Os surrealistas adoravam gatos e viam neles a liberdade livre de Rimbaud. Que o diga Leonor Fini!
Agora, conto a minha história recente. Ela começa quando uma gata fica sem a dona, que morre. Miava de saudade e de fome pelos quintais e nós demo-lhes comida uma vez. Essa vez foi-lhe esperança de mais vezes e a sua assiduidade à nossa porta passou a ser retribuída com o que ela esperava. Já se disse que não somos nós que escolhemos um gato, é ele que nos escolhe. Assim aconteceu: fomos escolhidos por ela. E por aqueles que a acompanharam. Todos os dias, à hora das refeições, ei-los ali à espera, silenciosos e eloquentes, como o Marcel Marceau que nos acaba de deixar. A gata que descobriu este filão é a única excepção ao silêncio. Mia como quem tem um grito na voz e possui o sentido trágico da vida. Se eu fosse um pouco mais antropomorfista, lembrava-me da Callas ao vê-la. É que ela faz do jardim um palco e, em cada passo, há a certeza do terreno conquistado. Mas, como na Callas, tudo nela converge para uma fuga que não podemos seguir.
Num destes dias, contei sete gatos à minha espera. Protejo-me com este número sagrado e digo que estas coisas não acontecem por acaso.
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